segunda-feira, 19 de março de 2018

Entreguei o meu presente,
numa caixa de vidro,
não entrei,
deixei na entrada e fui embora.

Observei de longe,
ela veio até a porta receber,
mas não me encontrou,
sentiu o meu cheiro,
mas não identificou.

Havia outro alguém
que veio ao seu encontro,
e que fez com que ela pensasse em mim,
era tarde demais,
ela esqueceu do meu rosto...

Eu toquei no presente com luvas,
não quis deixar rastros,
ela parecia feliz,
mas no fundo,
seus olhos não brilhavam mais,
o sorriso era claramente amargo.

Era a felicidade encaixada que ela sempre quis,
e eu não poderia suportar vê-la assim todos os dias,
quem a conhecia como eu,
saberia que o seu rosto estampava o desespero,
ela sufocava,
estava esperando ser salva,
mas não queria admitir,
e tinha me feito prometer não intervir
sem que antes ela me pedisse.

Junto com o presente deixei um bilhete,
mas eu acho que ela não aprendeu a ler
os meus recados sutis...

Eu mandei uma das pinturas de Saturno,
e mandei um poema,
ela nunca entendeu os meus textos,
ela nunca soube absorver bem as minhas intenções...

Na verdade,
essa encarnação fez com que ela
apagasse o meu rosto,
ela apagou até o sentimento,
a ligação que existia entre nós...

É meu castigo ser o anjo dela,
vê-la de longe,
por ter quebrado as regras.

Eu me ajoelho ao lado da
sua cama,
todas as noites,
eu guardo os sonhos e o sono dela,
eu a vejo transar com a outra pessoa,
eu não sei se mais me enojo,
ou se mais me invejo.

Ela me vê,
ela sabe que eu estou lá,
ela se sente observada,
e se mostra.

No bilhete do presente,
eu me despedi,
eu pedi pra trocar de função
e isso me foi concedido,
eu não volto a encarnar nesse mundo,
e digo isso aliviada.

Ela foi o maior amor das minhas vidas,
e a maior dor,
foi meu maior castigo.

Eu resolvi me abster.
Não volto aqui,
o recado estava explícito,
eu fui covarde,
me declarei,
e fugi,
não me mostrei,
não dei a ela a chance...

Deixei o frio soprar no coração dela,
só um pouco,
a espinha congelou,
mas eu sei que passou logo,
assim que ela identificou a caligrafia e
tentou me procurar virando a cabeça em 1/4 de raio,
eu já havia partido.

Eu decidi não esperar mais o pedido para salvá-la,
me atirei no vácuo do Universo,
eu me despedacei,
e já não há nada que reste de mim,
que não seja a voz.



                    Ingrid Nogueira.
Lá no bordel era lei,
a gente não conseguia nem se vestir de tudo,
era tanta energia,
tanto e sedução e beleza...
Eu lembro dessa encarnação...
Você também estava lá.

Eu lembro dos teus olhos.
Eram tantos corpos,
mas não podíamos ter o que desejávamos,
porque não era bem visto.

As orgias,
eu lembro dos seus olhares,
era quando conseguíamos trocar nossas
carícias pessoais.

Eu sempre te esperava chegar dos teus chás,
te esperava na janela.
Namoradeira não!
Não éramos mulheres com quem se namorasse...
Eu te esperava "mulher-da-vida",
puta, dada aos prazeres...
P'ros homens era propaganda dos serviços,
pra você era mulher!

Me lembro ainda do medo,
da vontade,
dos quase...

Lembro quando você me ensinou a fingir,
e de como você não conseguia fingir pra mim.

Eu lembro também do basta,
de quando fomos apanhadas,
de quando você me trancou,
de quando rasgava as minhas roupas de urgência,
eu lembro de quando você me proibiu de me vender,
eu lembro bem daquela noite,
daquela briga...

Lembro de quando você me olhou
da mesma janela onde eu costumava te esperar ansiosa...

Eu era quem olhava de fora agora,
sinto ainda a dor no peito,
eu sinto a dor.
A do tiro, e ainda mais a da posse,
a da traição...

O gosto de sangue,
a perda da égua de entre meio as pernas,
a sua perda do peito,
você fez, com aquele tiro,
uma porta de saída,
você foi embora de mim junto com
o sangue que me escapava.

Eu sinto ainda hoje as lágrimas
que te escorreram dos olhos
e que caíram na minha testa,
bem no lugar onde você me beijou...

Eu te perdoei,
lembro bem disso...
Eu te amei,
e ainda nessa vida,
Eu te amo.

Mas não corro mesmo risco.



                Ingrid Nogueira.